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domingo, 5 de junho de 2011

Vampira



Depois de mais um dia, pararam todos, na verdade, alguns poucos, num bar, para comemorar ou mesmo tramar ou afogar a vida que se tinha. E lá engoliram copos de cerveja gelada, assim como o tempo. Fim de noite – ou o início dela – estavam todos. Ele e ela. Conversando e revelando alguns de seus segredos. Estavam se revelando um ao outro. Ele já tinha visto aquele corpo de mulher antes: já havia percebido suas curvas e sugestões de um segredo, ou um assunto, não tocado em roda aberta. Chegou a dizê-la, certa vez, que ela parecia agressiva, de beleza. Ela era uma mulher e se bastava na apresentação.
Trocados segredos, dividiram o mesmo espaço por afinidades e por, de algum modo, estarem ali afinados. Era outro assunto: outro propósito e outro lugar.
Entre a conversa boa e os copos sucessivos de cerveja, ela, qual gato carente, alisava seu corpo quente no corpo dele. E ele correspondia àquele ato. Imaginou aquela mulher-gato dentro de sua cabeça profana. Ela já o tinha feito anos-luz.
A vontade comia suas carnes bêbadas, assim como aquela diaba mordia seu ombro e beijava seu pescoço, a cada abraço dado. Ela estava domesticando aquele corpo de homem-aberto -no –espaço. Ele correspondia à domesticação de modo sutil. A bandida já tinha a quem dominar. O outro homem estava ali, seco. A vampira já havia chupado todo o seu sangue. Ele seria o próximo. Ela armou a cama para este homem deitar e servir-lhe de banquete. Ele, todo alimento, estava ali, à espera da dentada que o consumiria.

- Você está maluca. Perdeu a noção?! Olha quanta gente aqui.

- E qual o problema? Se eu sou maluca, não tenho noção. Sou toda pulsão. Gente. Essa gente não vê nada além. Todos bêbados, como nós. A diferença é que nós vemos. Eles, não. Essa gente é comum, conformada. Catequizada. Nós não fomos catequizados, gato. E eu não quero nada além do que você já imaginou... Ou pensa que eu não entrei na tua cabeça de homem e vasculhei todos os seus pensamentos? Eu percorri por cada beco imundo e escuro da tua cabeça, vi todos os seus desesperos, dúvidas e desejos. Fazendo um juízo de valoração, você, no mercado, vale a mesma coisa que eu valho: nada.

O homem ficou abismado com a certeza das palavras daquela mulher. Porque era verdade. Estava inerme, quase completamente entregue.

- ...e ele? Você não vai fazer isso. Ele está aqui e isso é sacanagem. O cara é gente boa e gosto dele...

- Eu também, gato. Gosto dele. Mas isso pra mim não é impedimento. Nem tabu. Ai, vocês, homens. São muito regrados. Depois dizem que não entendem as mulheres. Somos muito mais simples de entender do que vocês.
 - Pára com isso. Você é uma bandida, sabia? Eu quero, quero dizer, não posso. Não devo.

O espírito cristão daquele homem já estava corrompido antes mesmo d’ele nascer. Mas não sabia disso. A mulher disfarçou e arrastou o homem para uma parte quase sem luz da rua. Jogou suas costas retas contra-parede.

- E agora?!

O homem, sem saída aparente, respirou fundo e

- olha isso é uma loucura não é justo eu sei você é linda mas isso não pode acontecer principalmente porque não quero causar danos à ninguém o que os outros vão pensar você está maluca não isso não é legal se ele não existisse isso é outra coisa precisamos pensar nisso  não tem nada a ver eu acho eu acho que não rola não pode rolar isso é loucura eles perceberam ai, meu deus você não tem noção mesmo pára de me tocar tira a mão de mim não podemos fazer isso pára eu não tenho esse direito nós não podem...
Os anjos todos perderam suas asas e caíram como pacotes pesados por sobre o chão da Terra. Os santos do homem-cristão foram decapitados e suas cabeças santas rolaram ladeira abaixo. Suas costas envergaram e seus pêlos todos eriçaram qual gato em perigo. Ali, ele foi devorado. Ela o deu um beijo na boca. E ele nela. A mulher agarrou o corpo da sua presa e chupou sua língua, para que o homem ficasse sem palavra alguma. Percorreu com as setenta e sete mãos todo o  homem, de fora à dentro. Sua língua trilhava caminhos pela extensão daquele corpo. Com uma das mãos, pegou-lhe pelos cabelos, puxou sua cabeça para o lado. Como uma vampira, mordeu-lhe o pescoço. Respirava quente no buraco negro de seu ouvido.  E, num esforço, ele era somente um corpo sendo devorado e correspondendo a cada uma das setenta e sete mãos daquela mulher. Estava entregue. Presente. Pulsante.  Ereto.  Ele também era todo desejo: um desejo proibido. Eram puro sexo.  
Quando soltou a boca e o corpo daquela carcaça de homem, ele, paralisado, ficou a olhar, vidrado nela.
Depois de ter cumprido seu propósito, aquele corpo apocalíptico se riu inteiro para o corpo estático do homem. Explodiu em uma gargalhada diabólica. E saiu de den’da escuridão, com a cabeleira negra e revolta para o lado. O sexo aceso, suas cadeiras num requebro desumano, ela passa pelas cabeças de santos espalhadas pela rua, entre anjos caídos. Volta para a conversa de bar, cínica, como se nada tivesse ocorrido. Enche o copo de cerveja. Bebe. Abraça aquele outro homem domesticado e sugado. Dá-lhe um beijo na testa, piedosa, como quem o abençoa. Entre os corpos bêbados, se ri, como uma inocente.
: a noite continuou e ninguém percebeu nada.

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